Antro – Análise

Rafael Medonça
Rafael Medonça

Desde 2013, ao jogar títulos como Rayman Legends, com suas fases musicais e temáticas em que o jogador precisa controlar o personagem de acordo com o ritmo da música, sempre esperei que esse tipo de mecânica fosse mais explorado nos videogames — justamente pela brincadeira perfeita e sinestésica entre o que se vê e como se interage com base no que se ouve nesse tipo de mídia. De lá pra cá, alguns jogos aproveitaram bem essa ideia, como Aerial_Knight’s Never Yield, Sackboy’s Adventure, No Straight Roads, Hi-Fi Rush, entre outros títulos mais antigos que se inspiraram em mecânicas musicais como HarmoKnight e Rhythm Thief. O que eu não esperava era ver essa combinação sendo usada para abordar temas como distopia, controle informacional e outras questões culturais e sociopolíticas.

Antro é um jogo que se encaixa exatamente nesse nicho. Desenvolvido ao longo de três a quatro anos pelo estúdio espanhol Gatera Studio, sua jogabilidade em 2D traz uma mistura de experiências: as fases musicais remetem a Rayman Legends, enquanto os puzzles lembram Inside. Sua estética pós-apocalíptica e sombria, apesar de única por evocar referências à cultura espanhola, também remete a diversos outros jogos do gênero.

Como o próprio nome sugere, remetendo à ideia de degeneração e isolamento, Antro tenta abordar temas densos e filosóficos, como toda obra distópica e pós-apocalíptica que se preze. Resta saber se essa mistura faz sentido dentro da proposta do jogo, tanto em termos de história quanto de gameplay. É sobre isso que vou tratar nesta análise.

Vai uma urina filtrada aí? / Reprodução: Autor

De Nittch à Nietzsche

Antro não perde tempo para inserir o jogador em seu universo. Não há sequer uma tela de título: logo no início, em poucas frases, entendemos que o mundo que conhecemos chegou ao fim, e a população vive no subsolo para escapar das condições inóspitas da superfície. O que poderia ser o início de uma nova forma de sociedade, revela-se uma repetição de absurdos já vivenciados na História, agora em um cenário ainda mais distópico.

Em Barcelona, os cidadãos foram divididos em castas (ou distritos), com diferentes papéis sociais. No Distrito 3 vivem os detentores do regime totalitário, comandado por uma entidade conhecida como O Salvador. No Distrito 2, uma espécie de burguesia do esgoto, vivem artistas e trabalhadores com algum acesso ao entretenimento — bares, casas de show e teatros. Já no Distrito 1 está a massa esquecida: pessoas exploradas ao extremo, condenadas a trabalhar até morrer, sem qualquer acesso a lazer. É nesse distrito que vive Nittch, o protagonista.

Apesar de evocar temas similares aos de Inside, Antro não deixa espaço para subtextos: é direto ao expor as desigualdades de uma sociedade em ruínas, onde os de baixo sustentam, literalmente, os de cima. Essa relação de poder, trabalho e opressão é o cerne do jogo — e o que impulsiona temas como liberdade, igualdade, revolução e democracia.

Nittch, nome que possivelmente faz referência ao filósofo Nietzsche, assume o lugar de sua irmã desaparecida, Patti (abertamente uma homenagem à cantora Patti Smith). Nos flashbacks, Patti sempre aparenta ser uma figura presente e engajada em causas democráticas e no desejo de trazer o poder de volta ao povo. Ela é praticamente uma figura materna que ensinou tudo o que sabe a Nittch, preenchendo sua motivação de incitar uma revolta contra a situação atual da cidade chamada La Cúpula.

Motivado pelos ideais da irmã e de um colega do Distrito 1, Nittch topa a missão de abandonar seu posto de trabalho e realizar uma entrega importante o suficiente para abalar por inteiro o regime totalitarista de La Cúpula. Para isso, ele precisa chegar até o Distrito 3 com o pacote em mãos — ou nas costas, em uma clara alusão aos entregadores de comida de hoje em dia — e fugir dos robôs responsáveis por manter o controle do sistema funcionando de forma opressora e sem oportunidades de revoltas ou revoluções. É com base nessa temática — e em várias influências da própria história espanhola, principalmente voltadas ao stalinismo — que Antro desenvolve sua progressão de fases e narrativa.

Nosso amigo Nittch, além do bem e do mal / Reprodução: Autor

Uma revolução se faz com música

Na jogabilidade, Antro funciona em dois ritmos: seções de plataforma e puzzles simples que lembram Limbo e Inside, sem muitas invenções ou diferenciais; e seções de corrida automática focadas em realizar comandos como pular, deslizar e atacar no ritmo da música. Com duração média de uma hora, dependendo da busca por coletáveis e reinícios, o jogo segue uma estrutura direta, mas eficiente. Porém, independentemente de se aprofundar no que o jogo tem a oferecer, a experiência não dura mais que um filme curto. Nesse quesito, é uma boa opção para quem gosta de jogos com curva de aprendizado fácil ou de experiências mais focadas no gênero walking simulator.

O diferencial de Antro está na atmosfera do jogo e na estética ao redor de La Cúpula. Apesar dos gráficos 3D simplificados — principalmente dos personagens humanos, que não possuem rostos —, o destaque vai para a ambientação da cidade e os efeitos de luz e câmera sincronizados com a excelente trilha sonora, trazendo um fator sinestésico essencial para jogos de ritmo.

A estética da cidade e os ângulos de câmera durante os percursos remetem a Abe’s Oddysee (PS1/PC), pela forte presença de maquinários e estruturas metálicas sujas espalhadas por todo o cenário. Claramente, a inspiração de La Cúpula está em localidades reais das periferias de grandes megalópoles, evidenciando o contraste entre pobreza e tecnologia — uma dualidade presente tanto em Barcelona quanto em cidades como São Paulo. Apesar de ser um tema recorrente nos videogames, Antro consegue criar uma ambientação original pelas suas referências e execução. Sem dúvida, esse é um dos pontos mais altos do jogo.

Quanto ao gameplay, a maior atração está nas seções musicais, com canções compostas exclusivamente para o jogo em parceria com o diretor de som Martí Valverde e rappers catalães. A maior parte das fases apresenta músicas que reforçam a temática de revolução e poder popular, além de narrar a jornada de Nittch em sua missão para destruir La Cúpula.

Indo ali tomar uma urina filtrada no Bar Manolo / Reprodução: Autor

Durante essas fases, o jogador precisa pular obstáculos, quebrar vidros e robôs e deslizar por debaixo de estruturas, tudo no ritmo da música e de sinalizações visuais que (quase sempre) ajudam na execução dos comandos. A inspiração em Rayman Legends fica clara, especialmente nos trechos em que se desliza por cordas entre seções da fase, criando pausas e respiros rítmicos.

As fases são bem curtas, em parte porque a maioria das músicas dura pouco mais de um minuto e meio. O jogador pode morrer caso erre muitos comandos, mas os checkpoints mantêm o ritmo da sequência. O desafio está presente, principalmente, para quem busca as conquistas do jogo, que exigem concluir as seções musicais com perfeição. A tarefa não é difícil, mas pode gerar frustração devido a alguns bugs de jogabilidade, como o personagem atravessando estruturas ou ações não sendo registradas. Na versão 1.03, testada no PS5, a segunda fase musical apresentou dois momentos que não computavam meus inputs corretamente, impedindo que eu completasse o jogo em 100%.

A experiência sinestésica funciona muito bem: cada música é visualmente reforçada por ângulos de câmera cinematográficos, iluminação integrada ao cenário e momentos de ação bem coreografados. Apesar do tom distópico, há boa variedade de ambientes. Em alguns trechos, no entanto, a leitura dos obstáculos é confusa, exigindo que o jogador decore as fases para passar sem sofrer dano. As trilhas misturam rap, trap e hip-hop, com algumas composições eletrônicas.

As seções de exploração e puzzles, por outro lado, trazem um clima mais tenso e sombrio. A trilha ambiente, combinada aos cenários inóspitos, cria uma atmosfera opressiva. Porém, apesar de interessantes, essas fases não possuem o mesmo impacto das musicais. Os puzzles são simples, os coletáveis são facilmente encontrados e não representam grande desafio. Essas seções parecem existir mais para estender a duração da campanha do que para aprofundar a narrativa, embora contribuam com a imersão no trajeto de Nittch por La Cúpula — mesmo sem grandes revelações ou reviravoltas.

Crítica social esvaziada

Apesar dos temas distópicos carregarem em sua estrutura uma série de assuntos sociais, políticos, culturais e econômicos, é comum ver obras esvaziadas de conceitos e debates, aproveitando apenas do fator estético para criar uma ambientação ou proposta. E talvez essa seja uma das maiores críticas de Antro: não há espaço e tempo de jogo para abordar a salada mista de conceitos e críticas que o jogo tenta levantar em pouco mais de uma hora de gameplay. Alguns temas estão concentrados nos coletáveis ao longo da jornada de Nittch, explicitando o estilo de vida dos Distritos desta Barcelona pós apocalíptica e todo o processo de controle e soberania de El Salvador em cima de La Cúpula. Ao mesmo tempo, são tantos conceitos sendo citados de maneira tão superficial que o jogo parece querer apenas preencher uma “checklist” de temas relacionados ao gênero distópico, sem o mínimo de profundidade ou exploração.

No final das contas, por conta da falta de tempo e profundidade, parte desses temas acabam servindo apenas como pano de fundo para temperar o cenário do jogo. Em vários momentos vemos que os elevadores dos Distritos são cheios de propagandas e que, mesmo em uma sociedade destruída, o marketing se faz presente para alienar e manter o desejo de consumo da população sempre ativo. Em outros momentos, é possível perceber que letreiros mostram informações sobre a quantidade de “restos de humanos” encontrados em algum Distrito naquela semana, sendo tratado de forma tão simples e vulgar quanto restos de lixo coletados na rua.  Os mesmos letreiros mostram informações como a quantidade escassa de comida ou de restos de insetos disponíveis para a população se alimentar e incrementam a sensação visual em que o futuro distópico e tecnocrata de Barcelona se encontra.

Nosso líder rebelde, o Nelson Manolo / Reprodução: Autor

Estes detalhes são pontos positivos de Antro, porém, ao mesmo tempo, outros temas mais delicados são apresentados nos coletáveis de forma irrelevante, sem tipo algum de explicação ou contextualização para o jogador, parecendo apenas conceitos jogados ao vento na tentativa de causar conflito, mas sem desenvolvimento. No final, a sensação que fica é de um universo com boas possibilidades de evolução de enredo em cima dos assuntos apresentados, com a esperança de desenvolvimento de uma narrativa mais complexa, algo que está longe de acontecer em toda a duração do jogo.

Antro termina de forma explicativa, porém ao mesmo tempo aberto para interpretações do jogador, o que não é nenhum tipo de problema. Mas, ao levantar diversos temas que sequer são explorados para além de uma única frase em um documento, a sensação que fica é: quantidade não é qualidade. Toda essa mistureba de conceitos e críticas sociais parecem em sua maioria termos vazios, ainda mais quando sua duração não comporta a capacidade de debate dos temas que foram levantados, uma vez que o maior objetivo do jogo é focar na relação sinestésica entre a música e o movimento do gameplay. Apesar da ótima ambientação e estética, seu engajamento com pautas sociais e culturais é disperso e raso como um vídeo de TikTok tentando resumir temas extremamente densos em minutos. Reflexo cultural de como as coisas são hoje em dia? Talvez.

Também achei curioso o fato de o jogo se passar em Barcelona e ter forte influência da cultura espanhola — com músicas cantadas em catalão e grafites no mesmo idioma —, mas toda a narração ser feita em inglês. Por outro lado, achei bem legal a opção de ativar as legendas durante as músicas cantadas, sendo possível entender melhor a temática dos raps, apesar de ser difícil ler e coordenar os movimentos frenéticos ao mesmo tempo.

Sem a música, a vida seria um erro

Apesar da crítica em relação à quantidade de temas que o jogo tenta abordar para a duração que ele possui, além de alguns bugs de performance e colisão na versão de PS5, a proposta de Antro é muito bem-vinda para um jogo desse tipo: que a música deve ser um meio cultural pelo qual ideais podem ser expressos com grande impacto e relevância para incitar sentimentos de mudança e revoluções, seja em um Sistema que configura a sociedade ou no próprio estilo de vida de um indivíduo. Esta mensagem fica bastante evidente, seja nas letras das músicas ou no gameplay que incrementa essa sensação de disrupção e movimento da trilha sonora.

Liberdade ou solidão? / Reprodução: Autor

Se a trilha sonora e a ambientação são de longe o ponto mais alto de Antro — mesmo para quem não é tão chegado no gênero de rap e hip-hop e em obras distópicas —, a quantidade de temas levantados e nem um pouco explorados deixam a segunda maior motivação de Antro sem substância – um jogo com foco narrativo através da música sem muito desenvolvimento no enredo para além do que você está vendo e ouvindo naquele momento. Sobram conceitos e temáticas mas falta tempo e motivação para explorá-las em um universo que é interessante, mas que poderia ser mais rico e profundo do que os problemas cotidianos de La Cúpula.

Esta análise é baseada na cópia de PS5 fornecida pela Selectavision.

Antro
6
Compartilhe esse artigo
Deixe um comentário