Clair Obscur: Expedition 33 – Análise

Victor Gerhardt
Victor Gerhardt

Clair Obscur: Expedition 33 é um jogo que eu não estava esperando. Na real, ninguém estava. Trata-se do primeiro jogo de uma nova (e enxuta) equipe de desenvolvimento: a Sandfall Interactive, composta por alguns ex-funcionários da Ubisoft – inclusive seu CEO, Guillaume Broche. Então, sim, tecnicamente estamos falando de um jogo indie que, aliás, foi em grande parte financiado pelo próprio Broche, que além de diretor criativo do jogo, também é, vejam só, filho de um magnata multimilionário. Mas aqui temos um raro caso em que o dinheiro de um milionário foi bem empregado e resultou em coisa boa.

Confesso que a primeira vez que eu ouvi falar no jogo foi no dia do lançamento, 24 de abril de 2025. Não demorou muito para começar o burburinho nas redes sociais sobre a extrema qualidade do game, e não levei muito tempo para me convencer de que esse seria o próximo jogo no qual eu despenderia minhas limitadas horas de jogatina depois do trabalho. Além de fazer uma review completa da minha experiência jogando, também vou buscar responder a algumas dúvidas que considero importantes de serem abordadas, para ninguém aqui comprar gato por lebre. Então, vamos lá.

Um JRPG Soulslike?

Todo mundo sabe como é comum o ímpeto dos jogadores – e da própria imprensa – em classificar um jogo e colocá-lo dentro de uma caixinha. Isso pode ser útil em muitos casos, mas quando chega uma obra que desafia muitas das convenções da indústria e combina aspectos de vários gêneros, isso pode acabar mais atrapalhando do que ajudando. Logo no primeiro dia, vi um post em alguma rede social batendo o martelo sobre o jogo ser um JRPG Soulslike. Eu sou daqueles que já torce o nariz só de ver o termo Soulslike. Por outro lado, JRPG é um gênero que frequentemente entrega jogos que me rendem meses de diversão. Naturalmente, fiquei confuso. O “J” de JRPG não é de Japão? Mas esse jogo é francês, diacho. O que tá rolando?

Um combate por turnos nada menos que perfeito.

Bom, precisamos ver o JRPG como gênero, e não apenas como um RPG feito no Japão. Afinal, o próprio Dark Souls é um RPG japonês, mas ninguém diria que se trata de um JRPG. Já Clair Obscur apresenta TODOS os elementos de um bom JRPG: história épica, personagens carismáticos a rodo, muito diálogo, cutscenes sensacionais, boa exploração, worldmap, combate por turnos, árvore de habilidades, distribuição de atributos… e a lista continua. Então, sim, não é loucura dizer que estamos falando de um JRPG aqui. Muito pelo contrário, eu diria que JRPG é o gênero que melhor define Clair Obscur.

E o Soulslike? Bom, aqui eu já acho forçado demais. Sim, temos alguns elementos de Soulslike em Clair Obscur, mas nem de longe o suficiente para o enquadrarmos no gênero. Dentre tais elementos, o mais evidente é a presença de algo similar às fogueiras de Dark Souls, onde você recarrega seus “frascos”, recupera sua vida, distribui pontos de habilidade e traz de volta à vida todos os inimigos do mapa. Tudo isso funciona de forma bem similar entre os dois jogos. Outra mecânica presente em Clair Obscur muito atribuída a Soulslikes são o “parry” e as esquivas – sim, estamos falando de um combate por turno que usa e abusa dessas mecânicas. Mais para frente falarei sobre isso.

O ponto de descanso me parece familiar.

Outro ponto importante para abordar antes de seguirmos a review é a dificuldade do jogo. Antes de mais nada: existe “easy mode”. Só por conta disso acho que já podemos desconsiderar chamá-lo de Soulslike, não é mesmo? Clair Obscur conta com três modos de dificuldade: história, expedição e expert – mas, para o bom entendedor, trata-se de fácil, médio e difícil, respectivamente. Aliás, eu finalizei o jogo no modo “expedição” – ou seja, no médio –, e o que posso dizer a respeito da dificuldade nesse modo é que ela é muito tranquila. O jogo continua desafiador, mas assim que você compreende bem suas mecânicas e sistemas e os utiliza propriamente, ele torna-se até relativamente fácil. Ao contrário do que eu fiz, vocês podem aumentar a dificuldade a qualquer momento caso esteja muito mamão com açúcar.

Ainda no âmbito dificuldade, acho importante salientar outro aspecto que distancia bastante Clair Obscur do gênero soulslike: o quesito punição. Todos sabemos como a morte é punitiva em um soulslike “de verdade”, e aqui temos o oposto. Ao morrer em Clair Obscur, você não perde absolutamente nada, e o salvamento automático do jogo é bem frequente, fazendo com que até a perda de progresso seja praticamente nula. Nesse tipo de jogo, essa me parece uma decisão bastante acertada em termos de game design, pois incentiva a experimentação e a exploração.

Então, resumindo: Clair Obscur é sim um JRPG, mas não um soulslike – embora pegue emprestado algumas mecânicas popularizadas pela From Software.

Baguette, croissant, abat-jour, soutien

Antes de analisar mais profundamente o gameplay, vou falar um pouco sobre o que diabos é Clair Obscur: Expedition 33. Clair Obscur é a tradução francesa da palavra italiana chiaroscuro – ou luz e sombra, em bom português –, que se trata de uma técnica da pintura renascentista. Levando em conta que a história geral do jogo é muito ligada às artes plásticas, e que “luz e sombra” também possui um significado metafísico intrínseco aos temas centrais discutidos ao longo da trama, esse nome não é nada menos do que perfeito. Já “Expedition 33” vem diretamente do arco narrativo central da história de Clair Obscur: a saga da expedição de número 33.

Começamos o jogo em uma ilha chamada Lumière e controlamos Gustave, personagem que é a cara do Robert Pattinson (o Batman), mas é dublado pelo Charlie Cox (o Demolidor), ou seja, Frank Miller ia adorar esse cara. Bom, o jogo começa durante o evento anual chamado Gommage, que não sabemos o que é, mas logo descobrimos que uma antiga namorada de Gustave será uma das envolvidas no Gommage daquele ano. Ele precisa encontrá-la para se despedir, pois também descobrimos que Gustave está prestes a sair em uma expedição. Sim, você sabe qual é.

Gustave, interpretado pelo Demolidor, mas com a cara do Batman.

Não demora muito para entendermos o que é o tal do Gommage e qual a missão da expedição 33 – número que fica grafado em um monólito gigante distante no horizonte de Lumière. Logo na abertura do jogo, já somos inundados com todos esses mistérios, e apesar de algumas perguntas já serem rapidamente respondidas, o grande segredo que envolve aquele mundo e todas aquelas pessoas é algo que só vamos descobrir bem mais para frente. Não tem necessidade de ir muito além do que eu já falei aqui. Recomendo que não procurem detalhes sobre a história antes de jogar. É bem legal ir descobrindo naturalmente conforme o avanço da narrativa. Já fica o alerta que muita review por aí entrega bem mais do que eu julgo necessário. Então, se você, assim como eu, curte surpresas, acho melhor evitar ler tantas avaliações. Vou tentar abordar pontos importantes do jogo sem entregar a história, para não estragar a experiência de ninguém.

O monólito com o número 33 no horizonte. O que isso significa?

Thèmes et motifs

Eu me recuso a dar muitos detalhes sobre o enredo de Clair Obscur porque considero essenciais — principalmente em uma mídia interativa como os games — a descoberta e a surpresa. Eu sei que uma grande parcela dos que leem uma análise quer decidir se vai ou não consumir aquele conteúdo, e eu quero que todos tenham a mesma experiência que eu tive ao me deparar com os rumos únicos que a narrativa tomou, e, sinceramente, não acho necessário que uma review ofereça muitos detalhes sobre a trama. A maioria de vocês está aqui mais pelo gameplay, e está tudo bem, pois foi o mesmo comigo. O fato desse gameplay estar embalado em uma bela história é uma grata surpresa, e espero que todos aí descubram por conta própria.

Mas isso não significa que eu não possa falar um pouco sobre os argumentos e motivos abordados pela história. O tema central de Clair Obscur é a perda e o luto. Praticamente todos os personagens discutem sobre as próprias maneiras de lidar com esses sentimentos e nos entregam ótimos diálogos sobre o assunto. O tema família é outro pilar dessa narrativa. Família é mais sangue ou afeto? Posso garantir que é algo que vai te fazer pensar.

O terceiro pilar que move a história é o desejo de viver e a admiração incondicional pela vida. É o “clair” do título – a luz –, que vai balancear com o “obscur” – a sombra e os fardos que caminham juntos com a beleza da nossa existência.

Identidade, dever, esperança, aceitação, controle, resiliência e obstinação são alguns dos motifs que ressoam constantemente – e através de vários personagens – ao longo da história contada em Clair Obscur. Se qualquer um desses conceitos também ressoa em você, é bem provável que a história desse jogo fique nos seus pensamentos por um bom tempo.

Plus que belle

Não mencionei antes, mas a estética dark fantasy de Clair Obscur é outro fator que levou à comparação com Dark Souls, mas aqui também temos muitas outras referências artísticas, como arquitetura e figurinos que remetem muito à Belle Époque – a França classuda e romântica pré-Primeira Guerra. Todas essas referências evidenciam o vasto repertório da equipe artística do jogo. Nem me lembro da última vez em que me senti tão deslumbrado com a arte de um jogo quanto agora com Clair Obscur.

É comum ver um trailer e ficar impressionado com o realismo deste jogo, mas o que torna a sua arte especial vai muito além desse tão desejado “realismo” que muitos perseguem. As feições e animação dos personagens são, sim, bem realistas. Todos os personagens são atuados brilhantemente por atores veteranos, como Andy Sekis (o eterno Gollum) e o supracitado Charlie Cox. A captura de movimentos é feita por outros atores igualmente competentes, o que dá ainda mais realismo a esses personagens. Não sei dizer se foram inspirados em modelos reais que cederam sua aparência aos personagens (algo comum na indústria; um exemplo famoso é a Lady Dimitrescu de Revident Evil Village, baseada na modelo Helena Mankowska), mas alguns lembram bastante pessoas conhecidas (o caso do Robert Pattinson que mencionei), porém, sempre é aquele “parecido, não idêntico”. Dito isso, tenho algo importante a acrescentar em relação ao visual dos personagens: eles são todos lindos. Digo, lindos fisicamente mesmo. Vai ser bem comum se ver apaixonado por um (ou mais) personagem desse jogo. Não que tenha acontecido comigo, imagina – ai, ai, Lune <3.

Realista nos personagens, mas surrealista e impressionista nas paisagens.

E o “realismo” de Clair Obscur termina aí, pois o que faz a arte deste jogo se destacar é justamente quando ela foge do realismo e abraça o impressionismo, o surrealismo e o simbolismo, que somados aos toques de art noveau encontrados na vasta arquitetura, penteados e figurino – e até no design de alguns inimigos – do jogo, tornam o visual de Clair Obscur um dos mais ricos e únicos da indústria.

Embalando os visuais deslumbrantes e os personagens absurdamente belos, temos uma trilha sonora igualmente impecável criada por Lorien Testard. É muito louco pensar que esse compositor mega talentoso usava seu tempo livre para praticar composição de trilhas de games e postar em seu Soundcloud. Clair Obscur foi seu primeiro trabalho na indústria, mas muitos vão pensar que se trata do trabalho de um veterano que já participou de centenas de produções.

As músicas de Clair Obscur estão facilmente entre as melhores que já escutei em um videogame, simples assim. Lorien soube capturar todo o sentimentalismo e atmosfera que cada trecho do game evoca e transformar em faixas perfeitas para cada momento. É realmente mágico ver como ele é capaz de transitar entre os mais diferentes estilos musicais e, ainda assim, entregar uma trilha sonora coesa e que conversa perfeitamente com o jogo. Eu espero muito que a caixa de entrada desse cara esteja abarrotada de convites para novos projetos. Com certeza ficarei de olho em tudo que ele fizer a partir de agora – se você também curte uma boa trilha sonora, recomendo fazer o mesmo.

Lorien Testard apresentando uma das belas canções de Clair Obscur juntamente com uma orquestra e a cantora Alice Duport-Percier.

Aparar, esquivar ou pensar?

Comecei a jogar Clair Obscur com uma esperança cautelosa de que finalmente teria encontrado um bom jogo que atendesse propriamente a todas as minhas necessidades lúdicas após tantas bombas que tenho jogado nos últimos tempos. A certeza de que o que eu tinha em mãos era ouro foi justamente quando comecei a aprender sobre o funcionamento do combate em turnos de Clair Obscur. Como fã de JRPG, da mesma forma que estou saturado dos combates por turno constantes e enjoativos da maioria dos expoentes do gênero, também não curto praticamente nenhuma das tentativas da indústria em “modernizar” esse tipo de jogo. Sim, estou olhando para você, Final Fantasy. Se esses combates dos jogos clássicos da Square ficavam rapidamente chatos e enfadonhos, a mistura de turno com tempo real dos Final Fantasy modernos acaba se tornando tão cansativa quanto. Algumas abordagens mais recentes que visam deixar o combate por turno mais dinâmico e divertido são, sim, interessantes, mas nenhuma chega aos pés da realização de Clair Obscur nesse quesito.

Falar que o combate desse game é simplesmente “combate de turnos com esquiva e parry” é apenas tocar na superfície de um mar de possibilidades que o jogo oferece. Sim, o basicão do combate por turnos do JRPG está todo aqui: cada personagem conta com barra de vida, barra de “mana”, itens, equipamentos, ataques básicos e magias; o turno é estruturado com base na velocidade de cada personagem; ganhamos XP e itens ao fim de cada luta vitoriosa. Todo arroz com feijão está aqui, mas o verdadeiro sabor de Clair Obscur está nos temperos.

A própria ideia de utilizar quick times events para temperar o combate por turnos não é algo novo. Mario RPG já fazia isso trinta anos atrás. E não é isso que torna o combate de Clair Obscur tão especial. Vejo muitos youtubers dizendo que você PRECISA dominar as esquivas e as aparadas para conseguir avançar no jogo, e já já vou mostrar que existe outro caminho. É claro, ser capaz de esquivar de todos os ataques inimigos vai fazer de você um deus nesse jogo… mas isso seria divertido?

Arma, pictos, habilidades, luminas. São alguns dos vários sistemas que, quando dominados, vão deixar o seu jogo muito mais interessante.

Em Clair Obscur, cada um dos 6 personagens jogáveis possui um sistema de combate único e intrincado com uma jogabilidade totalmente diferente entre eles. É muito mais profundo do que os arquétipos que já conhecemos nesse tipo de jogo, e para explicar propriamente o funcionamento de cada um seria preciso muito mais espaço do que eu tenho aqui, mas vou fazer um breve resumo de cada um.

    • Gustav é o primeiro personagem que usamos em combate, então é natural que seu sistema seja o mais simples de se entender. Basicamente, seus ataques geram cargas que mais para frente podem potencializar ataques massivos. Nada de muito especial aqui.
    • Lune é a Hermione do grupo; uma poderosa maga CDF cujo sistema de combate gira em torno da geração e do consumo de manchas elementais (gelo, fogo, terra, raio e luz). Os ataques dela são baseados nesses elementos e, ao serem desferidos, podem gerar ou consumir manchas. Ela também é a healer do grupo, possuindo magias de cura e renascimento. Lune talvez seja uma das mais complicadas de se usar propriamente, pois a ordem de geração e gasto de manchas impacta bastante a eficácia dela em combate.
    • Maelle é uma das personagens centrais da história, e por isso acaba sendo uma das mais poderosas. Seu sistema é baseado nas posições que ela pode assumir – defensiva, ofensiva, virtuosa e nenhuma –, e o que acontece quando um ataque é desferido sempre vai depender da pose em que Maelle está. A pose ofensiva, por exemplo, oferece mais dano, mas também deixa Maelle vulnerável, então não é uma boa ideia usar um ataque sem pensar pelo menos duas jogadas na frente (isso vale para todos os personagens, mas no caso de Maelle, acaba sendo questão de vida ou morte).
    • Sciel é uma linda guerreira alegre e bem-humorada. É facilmente a pessoa mais amigável do grupo. Seu sistema é o mais complicado de explicar, mas é um dos mais poderosos. Seus golpes aplicam predições nos inimigos, que são consumidas ao realizar golpes específicos amplificados de acordo com a quantidade de predições. Além disso, o sistema ainda conta com dois tipos de carga: solares e lunares. Aplicar uma predição gera carga solar e consumi-la gera carga lunar. E não acaba aí. Quando ela possui ao menos uma carga solar e uma lunar, entra em estado de crepúsculo (olha o Pattinson aí de novo), causando mais dano e dobrando a quantidade máxima de predições que pode aplicar. Complicado, né? Jogando fica mais fácil (ou não).
    • Verso é um personagem misterioso que entra no grupo mais adiante, então não vou falar sobre ele para não dar spoiler. Se existe um personagem feito para a galera do parry é este. Verso possui um sistema chamado perfeição, que vai de D até S (como em Devil May Cry). A perfeição começa no D e vai aumentando conforme Verso ataca e evita dano com esquiva e parry. Sofrer dano significa perder rank, o que o deixa inviável para jogadores como eu. Como é de se esperar, conforme vai subindo de rank, mais letal Verso vai ficando. Um sistema simples, mas não é para qualquer um.
    • Monoco é o único personagem não-humano da equipe, mas vou deixar que você descubra jogando quem e o que ele é. Monoco possui o “sistema Pokémon” do jogo. Ao contrário dos demais personagens que aprendem novas habilidades conforme sobem de nível, Monoco as aprende ao derrotar inimigos. Basicamente, ele adquire a essência dos inimigos derrotados e pode se transformar neles durante a batalha e executar seus golpes. Somado a isso, ele possui um sistema chamado Roda Bestial, que é uma roleta que vai se movendo conforme ações vão sendo feitas e que favorecem determinados golpes em cada uma das posições.

Como deu para perceber, o jogo oferece ao jogador uma quantidade estratosférica de opções, permitindo-nos adaptar o gameplay ao nosso próprio estilo. Além destes sistemas únicos de cada personagem, todos eles possuem um ataque básico e a opção de usar uma arma de fogo e atirar na cara de um vagabundo; algo parecido com Persona, com a diferença que aqui a gente realmente controla a mira, podendo atirar diretamente em pontos fracos do inimigo. O jogo ainda conta com um sistema de “equipamentos” que concedem bônus passivos, chamados pictos e luminas. Isso sem falar nas dezenas de armas disponíveis para cada personagem, cada uma com particularidades únicas que viabilizam as mais diferentes builds que você poderia sonhar em experimentar. É MUITA coisa.

Sobre o sistema de parry e esquiva é aquilo que todo mundo já sabe: esquiva evita o dano e parry permite um contra-ataque poderoso após sua execução. Mas não se assuste caso você tenha reflexos de uma lesma míope como eu, pois sou a prova viva de que “parry” não é tão necessário como falam por aí. Eu zerei Clair Obscur sem executar um parry sequer. Quanto às esquivas… bom, essas eu precisei usar, mas ainda assim, errava muito; meu índice de acerto nas esquivas certamente foi menor que 50%, e mesmo assim consegui zerar na dificuldade média sem muito sufoco.

Um exemplo de algo que não aconteceu nenhuma vez no meu jogo: um parry.

No entanto, o que tenho de ruim em questão de reflexo, eu tenho de bom em curiosidade com sistemas. Fiquei horas navegando menus, lendo habilidades e itens e, com isso, fui construindo combinações sinérgicas com tudo o que o jogo podia me oferecer. Dessa forma, acabei delineando um grupo incrivelmente coeso e estratégico, capaz de ganhar batalhas difíceis mesmo errando praticamente todas as esquivas. Aliás, o erro nas esquivas, na minha opinião, é um fator que pode tornar as batalhas ainda mais interessantes.

Todo RPG, físico ou eletrônico, possui um fator probabilístico em que tudo pode dar absolutamente certo ou terrivelmente errado, apenas baseado no rolar de um dado. Clair Obscur faz isso depender mais das suas habilidades do que da pura sorte (apesar de ainda existir o fator sorte no jogo, como a chance de dano crítico, por exemplo). Quando dá tudo errado e parte do seu grupo morre, você tem a oportunidade de se adaptar e conseguir dar a volta por cima; de uma hora para outra você se sente mais focado e consegue realizar esquivas seguidas simplesmente por conta do seu estado de espírito atual e, quando percebe, conseguiu superar o desafio. Em um RPG totalmente passivo, não importa o quão focado ou relaxado você esteja na batalha, você não terá o controle dos dados.

É impossível ter sucesso no combate de Clair Obscur sendo totalmente alheio aos seus sistemas. É possível zerar muitos dos melhores JRPGs clássicos apenas executando os mesmos golpes sem pensar muito, usando as armas com maior número de ataque e fazendo o bom e velho grind caso um chefe esteja muito difícil. Clair Obscur anula completamente essas convenções e limitações que nos acompanharam em tantos jogos nesses 40 anos de JRPGs.

As principais dicas que eu dou em relação ao combate de Clair Obscur são simples: aprenda os sistemas de cada personagem e adapte o que aprendeu ao seu próprio estilo; e não gaste tempo praticando a esquiva e o parry perfeitos, pois seus erros são tão importantes quanto seus acertos para um combate interessante e envolvente.

Um mapa aberto. Uma aventura linear.

Para boa parte das pessoas, um dos grandes atrativos de jogos AAA modernos é serem um mundo aberto repleto de coisas pra fazer. Felizmente, Clair Obscur não é um AAA. Já gostei muito de jogos de mundo aberto, mas hoje é algo que procuro evitar. Atualmente, valorizo muito mais uma boa aventura linear e, sendo sincero, é como todo JRPG deveria ser. Enquanto RPGs ocidentais buscam dar liberdade ao jogador para criar a própria história – e nomear e personalizar cada milímetro de seu personagem –, os RPGs orientais estão mais preocupados em contar uma história fechada através de personagens já com nome, aparência e personalidade definida. Uma história fechada implica urgência, e um personagem definido implica agência; ou seja, é raro que um JRPG, narrativamente falando, consiga acomodar o estilo mundo aberto de forma verossímil.

Em alguns momentos de Clair Obscur, os próprios personagens dão a dica de quando é uma boa oportunidade para dar um rolê pelo mapa. Apesar de não ser mundo aberto, o jogo possui um mapa com uma boa quantidade de lugares opcionais a serem visitados, mas é justamente aqui que eu percebi uma pequena falha em Clair Obscur, mas já vou dar a dica de como contorná-la.

Um mapa aberto com várias tarefas opcionais para fazer, mas sem ser cansativo.

O jogo tem três atos, mas o terceiro é basicamente: enfrentar o chefe final… ou, se preferir, dar uma volta nesse mapa lindo antes e deixar o chefe pra depois. E isso é algo que os próprios personagens incentivam. Não há uma urgência narrativa naquele momento para ir direto ao desafio final; de acordo com os personagens, “nós precisamos estar prontos”. No ato 3, é quando o mapa está finalmente 100% aberto para exploração (pense no mapa como um metroidvania, ou seja, existem partes dele que só são acessíveis com determinada habilidade ou item). É quase como se o ato 3 fosse um pós-jogo, com o detalhe de que você ainda não derrotou o chefe final. Mas qual o problema disso? Se, assim como eu, você optar por postergar o chefe e dar um rolezinho, fazer umas sidequests, matar uns bichões que aparecem no mapa,  etc., quando finalmente se sentir pronto e decidir enfrentar o chefe final, vai perceber que está pronto demais e a luta que deveria ser difícil e épica se torna tão fácil que quebra completamente o clímax do final do jogo. Então, não cometa esse erro: no começo do ato 3, parta direto para o chefe final e tenha um desafio melhor do que o que eu tive. É pra ser difícil mesmo. Aliás, faça o que você quiser, eu não sou sua mãe.

Level design eficaz e propositalmente simples

Talvez o aspecto mais pé no chão de Clair Obscur seja o level design. Não que seja ruim, longe disso. A questão é de perspectiva: em praticamente todos os outros aspectos, o jogo brilha de forma avassaladora, mas quando se trata do design das fases, ele acaba sendo mais conservador.

Através do mapa do jogo, você pode acessar os cenários em que a ação se desenrola, nada muito diferente de qualquer JRPG com worldmap navegável. Mas o level desses cenários não apresenta muitas formas diferentes de ser explorado. Não é necessário sequer um minimapa para nos orientar por esses cenários, já que, em 90% das vezes, a exploração consiste em seguir um caminho bem definido e com uma ou outra bifurcação que pode te levar a um item.

No entanto, este não é um jogo que demanda uma exploração massiva; o foco de Clair Obscur é a narrativa e o combate. O level design se mantém simples e coeso, cumprindo seu papel de nos guiar até a próxima batalha e avançar na história. É uma questão de prioridade. Estamos falando de um jogo ambicioso, desenvolvido por uma equipe muito reduzida, então escolhas precisaram ser feitas.

E hoje eu vejo isso como uma coisa positiva. Jogos que tentam ser tudo acabam não sendo nada. O tempo que um jogo perde incluindo sistemas e mecânicas que acrescentam pouco ao loop de gameplay e que só estão ali pela quantidade, é um tempo precioso que poderia ter sido usado refinando os aspectos em que o jogo realmente brilha.

Mas tem uma última coisinha que me incomodou durante minha navegação pelos cenários de Clair Obscur: a ocasional falta de um ponto de referência. Algumas vezes, ao sair de uma batalha, eu não fazia ideia do lugar de onde eu tinha vindo e para onde estava indo. Minha sensação era de que a câmera girava e não me colocava na posição em que eu estava no início da batalha. Eu pesquisei sobre esse problema e, aparentemente, não fui o único a percebê-lo. É algo que poderia ser facilmente resolvido programando o personagem para estar sempre virado para frente ao sair de uma batalha, mas a simplicidade do level design também vem a calhar nessa hora, pois quando você percebe que pegou o caminho errado, basta dar meia-volta e seguir em frente.

Ui, que som!

Por fim, vou falar brevemente sobre esses dois aspectos que podem não parecer, mas possuem uma grande importância em Clair Obscur: o som e a UI.

Como eu falei anteriormente, a trilha sonora de Clair Obscur é fenomenal, o que pode acabar fazendo com que a gente se perca na beleza das canções e negligencie o trabalho incrível que a equipe de som realizou nesse jogo. E aqui deixo mais uma dica: jogue com fone. É algo que realmente pode impactar o próprio gameplay do jogo. Explico: talvez você desconsidere tudo o que eu falei sobre não se importar tanto com esquivas e parries, pois quer colocar seus reflexos à prova, o que está tudo bem, é claro (de novo, não sou sua mãe). Mas então saiba que o jogo, propositalmente, nos prega peças visuais através das animações dos inimigos, exatamente para dificultar o parry. No entanto, assim como o Demolidor – o outro personagem encarnado pelo ator que interpreta Gustav –, priorize seu ouvido, pois a equipe de som fez um brilhante trabalho em colocar dicas sonoras no momento ideal para o parry. Alguns jogadores até reduzem o volume da música para facilitar, mas aí eu já considero um sacrilégio.

Também vou tecer uma pequena crítica sobre a UI/UX. Apesar de esteticamente bonita e harmoniosa com a programação visual geral do game, estamos falando de um JRPG em que menus organizados e de fácil compreensão são vitais para que o jogador consiga navegar de forma fluida por todas as informações disponíveis. Clair Obscur falha um pouco nesse quesito, e algumas opções podem passar despercebidas pelo jogador menos atento. Por exemplo, temos um caso clássico de dois menus que deveriam ser apenas um: o de pictos e o de luminas. Pictos funcionam de forma parecida com os materiais de Final Fantasy VII; devem ser equipados nos personagens para obter uma vantagem. Ao utilizar muito um picto, ele é assimilado e torna-se uma lumina, ou seja, agora qualquer personagem poderá usufruir dessa vantagem contanto que pague os pontos de lumina necessários. Esses dois sistemas estão intrinsecamente ligados; um depende do outro, mas o jogo os coloca em menus separados e em lados opostos da tela, quando claramente inseri-los juntos facilitaria demais a nossa vida.

Pictos de um lado da tela e Luminas do outro, sendo que são dois sistemas interligados. Uma escorregada em termos de usabilidade.

Um outro probleminha é que algumas informações importantes estão muito pequenininhas e pouco saturadas (como as informações de manchas nos ataques de Lune), e isso pode ser um problema para quem não possui a visão perfeita, mas aí pode ser só um problema meu.

Pare tudo e vá jogar Clair Obscur

É incrível ver os frutos da visão e do esforço de uma equipe brilhante que começou com apenas seis pessoas. O desenvolvimento de Clair Obscur levou seis anos e, na fase final, contava com ainda impressionantes 22 pessoas, um número insanamente pequeno quando levamos em consideração o escopo grandioso do projeto e em como muitos AAA não conseguem atingir uma fração da qualidade de Clair Obscur mesmo com cem vezes mais pessoas.

Clair Obscur vendeu 3,3 milhões de cópias em 33 dias. E nessa imagem tem 33 bandeirinhas.

Não importa o tipo de jogo que você curta, Clair Obscur é um daqueles raros games que é tão bom que vale a pena dar uma chance mesmo que não seja fã do gênero. A beleza, a música, as mecânicas, os sistemas, os personagens, a história… Qualquer pessoa que simplesmente admire uma boa arte merece ter a experiência de Clair Obscur.

Aproveite que o jogo está disponível no Game Pass, mas caso você prefira comprar, saiba que ele não custa os 300 reais ou mais que estão cobrando por qualquer AAA genérico por aí.

Após minhas 36 horas de jogo, eu já posso cravar: o ano está na metade, mas estamos diante do Game of the Year.

Clair Obscur: Expedition 33
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