The Alters – Análise

Rafael Mendonça
Rafael Mendonça

Existe aquela famosa máxima que todo mundo já passou na vida de se arrepender de alguma decisão importante ou ter certeza, tempos depois, de que tomou a alternativa certa na sua vida: desde escolhas profissionais e pessoais que, no final de tudo, moldam muito a forma como a gente se relaciona com o meio. Fato é que, quando criança, a maior parte dessas escolhas não são decisões suas e, salvo aquelas memórias, traumas e situações que carregamos desde a infância e que nos afetam enquanto adultos, parte interessante da vida está em tomar suas próprias decisões e ir trilhando seu caminho de acordo com essas escolhas.

Filosofias de mesa de bar à parte, The Alters é um jogo que, entre várias mecânicas de gerenciamento de recursos, atividades e pessoas, traz à tona no gameplay como essas decisões nos levam a diferentes “eus” ao longo da vida. Será que a sua decisão de seguir uma carreira profissional te transformou durante anos em uma pessoa totalmente diferente do que poderia ser se tivesse escolhido outra profissão? Ou uma mudança de vida para morar em outra cidade ou país, quanto isso pode afetar totalmente a forma como você se relaciona com sua família, seus novos (e antigos) amigos e como você percebe a cultura ao seu redor? A graça é justamente descobrir enquanto se vive, certo? Mas, e se você pudesse ver no ato o quão diferente você seria se não tivesse terminado aquele relacionamento ou se tivesse (ou não tivesse) um filho? Em The Alters, isso é possível graças ao Rapidium! E as consequências disso estão em ter de gerenciar uma equipe em que todas as outras pessoas são você mesmo, só que não exatamente você.

Chega mais para entender do que estou falando e como The Alters consegue agradar com um pouco de tudo no gênero dos jogos de gerenciamento de recursos de uma forma bem viciante e intrigante.

Jan, Jan mesmo e Jan

Tudo é meio complicado de se explicar, mas essa é a graça de The Alters: em grande resumo, Jan foi o único sobrevivente em uma missão interplanetária que tem como principal objetivo recuperar Rapidium, uma substância até então fictícia que consegue alterar espaço e tempo, gerando inúmeras possibilidades dos seres humanos “brincarem de ser Deus”. Após o desastre, com apenas um sobrevivente, Jan encontra a nave em que os tripulantes deveriam utilizar para a missão em boas condições, porém sem combustível sequer para sair do lugar.

A partir da nave, ele consegue entrar em contato com a corporação que planejou toda a missão (quando a corporação tem vontade de entrar em contato) e percebe que terá de ser responsável por tomar conta da sua nova casa, que (ainda não) se move, coletar recursos num planeta inóspito para poder construir ferramentas e mecanismos de sobrevivência e, ao mesmo tempo, tomar cuidado com a radiação exposta do lado de fora, além de precisar se alimentar e descansar constantemente. Com tanta atividade assim e ainda garantir a sobrevivência num planeta desconhecido, o menino Jan precisaria ser, no mínimo, umas 3 pessoas. E é isso que a corporação sugere: que, através da obtenção do Rapidium no planeta, ele consiga criar clones para garantir sua sobrevivência e, ao mesmo tempo, a tarefa de coletar Rapidium de volta para a Terra.

A parte de se clonar é um dos temas-chave de The Alters: esse procedimento é feito em salas disponíveis na nave e que, de forma muito suspeita, contêm toda a informação de vida dos tripulantes que estavam na missão. Através dela, Jan consegue ver uma linha do tempo de seu DNA com todas as escolhas que fez em sua vida, levando-o até aquele momento. O Rapidium possibilita, então, que ele possa criar uma alteração em seus registros de DNA, abrindo uma nova ramificação em momentos importantes de sua vida. Ao invés de se livrar de seu pai abusivo e tentar a vida em uma faculdade distante — levando-o a não cuidar mais de sua mãe, que estava muito doente e não poder se despedir dela em vida — Jan fez uma escolha de vida que o levou a um destino diferente. Mas, e se tivesse ficado? É a partir dessa mecânica que o jogo brinca com o conceito de que o meio, o social, é o que molda o ser. A partir do momento em que você cria um outro Jan, que dessa vez decidiu ficar e enfrentar o pai para ajudar a sua mãe, suas escolhas de vida o transformam em outro homem. Esse novo Jan nasce no ventre da nave e, devido às suas novas escolhas, trabalha como mecânico. É a partir dele que você poderá consertar ambientes na nave e fazer com que ela consiga se mover novamente.

Porém, uma vez que dois Jans habitam a nave, qual Jan passa a ser o verdadeiro e qual é o falso? Isso é um argumento a ser levado, na verdade? Além de tudo, como a corporação obtinha informações de DNA de seus tripulantes de uma forma tão específica? O que eles estavam planejando com isso tudo? Através de várias dúvidas que surgem com a premissa inicial de The Alters, o jogador precisa ajudar a tripulação de Jans a sobreviver e trabalhar para garantir o sucesso da missão, questionando ou não seus métodos. E é aí que o gameplay entra, misturando gerenciamento de recursos, pessoas e uma pitadinha de ação em terceira pessoa.

Os outrers / Reprodução: Autor

Gerente Simulator

Uma das coisas que mais me afastou de jogar The Alters de forma direta está justamente em uma das principais mecânicas do jogo: aqui, você precisa conciliar seu inventário, as atividades realizadas por você e pelos alters de sua equipe, os desejos e pedidos de cada um em relação à forma como você os gerencia, além de precisar lidar com a missão de sair do planeta, fazer sua nave funcionar ao mesmo tempo e atender (ou não) os pedidos da corporação. Em grande resumo, o jogo às vezes parece um segundo trabalho — e para quem trabalha como gerente, de alguma forma, vai sentir isso aos poucos de acordo com a progressão do jogo e os novos problemas que vão aparecendo ao longo da jornada do(s) Jan — tanto de forma positiva quanto negativa. Negativa porque demorei mais do que gostaria para terminar nos dias em que eu trabalhava muito (na vida real) e não conseguia encostar no jogo, pois a sensação de estar “trabalhando de novo” era latente.

Mas, ao mesmo tempo, a forma como você precisa realizar tudo em The Alters é viciante e muito interessante — e a necessidade de gerenciar tempo, atividades, pessoas e funções para manter o produto (a nave) funcionando faz com que tudo esteja muito bem amarrado no universo do jogo. As revoltas, as discussões entre os membros da própria equipe, as decisões que você precisa tomar com poucas informações ou com informações conflitantes dão ainda mais essa sensação de estar passando por uma rotina normal de gerenciamento de projetos, só que num lugar muito mais inóspito (e com nível de radiação constante, uma vez que você e seus membros podem morrer de irradiação por trabalhar demais do lado de fora).

Às vezes, um alter de Jan pode se sentir desmotivado e vale mais a pena dar um dia de descanso, caso você não seja carrasco o suficiente para forçar que ele continue trabalhando, o que pode afetar o relacionamento com você e a saúde do mesmo. Em outros momentos, dependendo da personalidade dos Jans, eles podem pedir para que você crie instalações específicas, como uma academia, alguma sala de descompressão ou até mesmo um espacinho único para descansar. Cada um desses projetos pode ser pesquisado pelo seu alter cientista (um dos mais importantes para você conseguir progredir no jogo e melhorar as habilidades de seus itens) e construído na nave, utilizando um pouco dos recursos necessários para completar a missão. Esses projetos viram módulos para serem encaixados na nave, que pode suportar até um certo número de módulos de acordo com o seu peso e espaço. Isso pode ser gerenciado depois, aumentando o espaço da sua nave e, ao mesmo tempo, a necessidade de recursos para fazer ela continuar funcionando.

Os halteres / Reprodução: Autor

O jogo apresenta uma série de funções e oportunidades de você utilizar seus recursos, não somente para o sucesso da missão, mas também para manter um bom relacionamento entre os alters e garantir a saúde física e mental deles. O segredo está justamente em conseguir garantir esse equilíbrio entre o tanto que você se compromete com cada uma dessas atividades — algo que funciona muito bem no jogo e deixa o esquema de risco e recompensa bem equilibrado, apesar de a dificuldade não ser tão grande assim. A mecânica de construção e organização de módulos é quase um minigame à parte. Você pode ajustar a nave toda de acordo com o seu feng shui e deixá-la personalizada do seu jeito, quase igual à forma viciante que é arrumar o inventário na maletinha do Leon em Resident Evil 4.

Aqui, é impossível agradar todo mundo, tal qual na vida real: nem todos os seus companheiros (que são você mesmo, mas em outra timeline) ficarão felizes com as decisões que você tomar e até mesmo podem discutir entre si. E isso faz parte: algumas consequências dos seus atos precisam ser aceitas por você para tomar uma decisão e, em certos momentos do jogo, você precisará decidir qual caminho prosseguir para tentar se salvar e salvar sua equipe, mesmo que isso possa significar a revolta de alguns membros, tomando decisões irreversíveis. A saúde e o humor dos alters também são necessários para manter a missão ativa e você pode falhar caso um integrante esteja muito irritado contigo — então, quanto mais pessoas existirem na nave, apesar de facilitar na divisão de funções, também trarão uma dificuldade de convivência com os outros membros, além de um número maior de recursos necessários (para se alimentar, para poder dormir, etc.), além de ser mais uma pessoa para precisar atender demandas, lidar com o relacionamento e por aí vai.

Há algumas formas bem interessantes de dar uma moral para toda a equipe, preparando banquetes ou assistindo a filmes que estão perdidos pelo planeta nos destroços da nave que caíram por todo o lugar. Esses filmes são bem interessantes, porque se tratam de curta-metragens, tanto animações quanto filmagens em live action. Uma delas, inclusive, é uma gravação da equipe do jogo produzindo The Alters — mais metalinguagem que isso, impossível.

Sua nave (e casa) é um pneuzão da Michelin / Reprodução: Autor

Para além da gerência

Um dos diferenciais de The Alters está justamente na rotina do jogo entre coletar recursos e gerenciar os membros da equipe, tanto nos desejos deles quanto nas necessidades que precisam para sobreviver. O fato de, ao sair da nave, o jogo ser mais “convencional” com um formato de exploração em câmera de terceira pessoa, dá uma quebra no que poderia ser uma possível monotonia só de navegar entre menus para atribuir ações aos outros integrantes da equipe e gerenciar recursos. Nisso, o jogo sabe equilibrar muito bem o desafio e o ritmo de exploração com o ritmo de gerenciamento.

Ao longo do jogo, é necessário por vezes explorar o planeta em busca de recursos, encontrando pontos de mineração que também servem como lugares de fast travel da nave até um determinado ponto do cenário. Após conectar a nave com um dos pilares de mineração, é possível extrair recursos ou deixar algum outro alter realizando essa tarefa enquanto você procura por outros recursos ou postos de extração de matéria orgânica, metais, Rapidium ou minerais. À primeira vista, o que parece ser um jogo similar ao Death Stranding é subvertido por uma constante busca de recursos que está intrínseca à progressão do jogo e à sobrevivência do jogador na exploração do cenário.

O jogo se divide em atos e, em cada ato, você explora uma parte específica do planeta, cada parte com seus desafios e cenários específicos. Ao prosseguir com o jogo, os desafios vão ficando um pouco mais complexos, assim como a navegação do planeta, que apresenta novas ameaças, mecânicas e até mesmo inimigos para lidar. O combate é bem simples e não merece nenhum tipo de atenção comum, mas dá uma quebra satisfatória em relação ao modo de gerenciamento — apesar de, em alguns momentos, ser um pouco irritante pela quantidade grande de monstros que existem, principalmente quando o planeta é coberto por ondas de irradiação que aumentam a quantidade de inimigos.

Os altos / Reprodução: Autor

Apesar disso, quanto ao desafio, achei bem tranquilo para um jogo desse gênero, o que é ótimo porque pode ser uma porta de entrada para pessoas que nunca jogaram ou não ligam tanto para jogos de gerenciamento — o que é bastante o meu caso. Essa mescla entre terceira pessoa para a exploração, junto do gerenciamento em si, deixa o jogo muito mais palatável. A dificuldade tem seus momentos complexos (como quando, por exemplo, uma irradiação solar chega perto da nave e começa a quebrar todos os equipamentos que você possui, sendo necessário gerenciar pessoas e recursos para consertar tudo e manter as outras atividades em funcionamento), mas para além disso e do risco de tomar decisões que você não gostaria de ter tomado, o jogo é bem conciliável e você pode carregar seu progresso em dias anteriores, ou seja, o jogo salva todas as suas atividades ao longo dos dias que você vive dentro da nave coletando recursos. Basicamente, o jogo salva a cada dia de atividade feito.

Inicialmente parece bem confuso, mas não precisa de mais de 1 ou 2 horas para pegar a rotina do jogo e entender o que precisa ser feito, apesar do jogo, a cada momento, trazer novos desafios e funções que se integram de forma bem natural com o desafio e a história. A duração de The Alters é bem coesa. É uma experiência relativamente grande se você parar para dar atenção a todos os detalhes e tentar fazer sua nave, para além de funcionar, ser uma casa para todos os alters, além de você. Mas é um processo viciante e muito orgânico tentar ajudar seus alters, pois todos eles são, ao mesmo tempo, versões de você, com muitas diferenças, mas que também compartilham problemas similares. Isso gera uma identificação muito interessante entre os personagens e é sempre divertido ver que todos eles são a mesma pessoa (quase um multiverso, mas de uma forma muito mais interessante do que a maioria dos jogos tenta abordar esse tema).

Uma singularidade quântica

The Alters foi, realmente, uma das maiores surpresas e um dos melhores jogos que eu tive o prazer de jogar neste ano. A premissa do jogo, a história, o desafio e o balanceamento entre risco e recompensa, além do gameplay variado, são, todos à sua maneira, excelentes. Lembrando que o jogo foi feito pela 11Bit Studios, que já é bastante conhecida pela franquia Frostpunk, também focada em gerenciamento de recursos. Deu para ver o quanto eles evoluíram até chegar na proposta de The Alters.

O objetivo maior é sobreviver numa nave que mal funciona e arrumar uma forma de sair do planeta inóspito em que seu personagem e seus clones/alters se encontram, mas você vai, aos poucos, entendendo que há muito mais do que isso. Cada alter tem seu desejo, sua história, seu protagonismo na trama. Para além disso, há ideais muito conflituosos entre o que a corporação (que enviou você para a missão) quer com o seu resgate (em grande resumo, coletar Rapidium), o que um dos cientistas da corporação deseja, o que a ex-namorada de Jan deseja e pode te ajudar na jornada e, por fim, o que você, como jogador, deseja e entende em relação à vontade de cada um desses personagens.

ooooooooo Miiiillla / Reprodução: Autor

Junte isso com cenas bem interessantes e uma variedade de momentos, alguns mais cômicos, outros bem mais densos e conflituosos, e tenha um jogo que deixa sempre você curioso para saber qual vai ser o desfecho dele. E isso em um jogo de gerenciamento, em que o desafio é sempre constante, vale muito. Vale a pena dizer que há decisões importantes que vão mudar o final do jogo, tanto nas versões de Jan que você escolhe dar a vida quanto nas decisões que você deseja se focar enquanto jogador, desde a forma como gerencia a nave até decisões no momento final de The Alters. São ao todo seis finais, com algumas variações entre si, e o fato do jogo guardar seu progresso ao longo dos dias permite que você tente de novo e veja outros desfechos caso não esteja feliz com o que você obteve inicialmente.

De longe, vale muito a pena jogar por si próprio, sem ver nenhum guia ou spoiler, pois isso incrementa bastante a experiência e a forma como você se importa com as decisões apresentadas na história. The Alters consegue, de forma bastante satisfatória, nos fazer pensar bastante sobre como mudamos muito ao longo do tempo, mesmo que inicialmente não percebamos. Que busquemos sempre ser a nossa melhor versão, com ou sem Rapidium.

Esta análise é baseada na cópia de PS5 fornecida pela 11 bit studios e MKTR Agency.

The Alters
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