Despelote – Análise

Gabriel Kreyssig Romualdo (@budabyte)
Gabriel Kreyssig Romualdo (@budabyte)

Em um cenário futebolístico dominado por EA Sports FC e eFootball, experiências alternativas são sempre bem-vindas – ainda que raramente ganhem destaque. Foi justamente por isso que Despelote chamou minha atenção desde o seu anúncio. Desenvolvido pelos equatorianos Julián Cordero e Sebastian Valbuena, o jogo funciona quase como uma autobiografia de Cordero, retratando o amor de uma nação pelo futebol sob o olhar de uma criança, enquanto o país enfrenta um período de instabilidade política e econômica.

Despelote é charmoso, nostálgico e uma verdadeira ode ao esporte bretão. Vem comigo conhecer um pouco mais dessa experiência tão única e comovente!

Amor por la pelota

Ao iniciar Despelote, nos deparamos com Tino Tini’s Soccer 99, carinhosamente chamado por nossa mãe de “FIFA”. Esse simples joguinho de futebol funciona basicamente como um tutorial, já que os comandos utilizados nele e no “mundo aberto” são os mesmos. Ao fundo, ouvimos os pais do nosso protagonista, Julián, conversando sobre futebol. Times regionais como o Aucas – que já complicou para o meu Flamengo um tempo atrás – e o Quito – possivelmente o Deportivo Quito – são mencionados, trazendo aquele clima autêntico de futebol equatoriano que eu tanto queria vivenciar.

Como na vida real, os pais de Julián não ligam para o videogame e logo te expulsam da frente da TV, mas por um bom motivo: vai ter jogo da seleção equatoriana contra o Peru, pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2002. O Equador é a sensação da competição, parando o país inteiro a cada partida. Após a vitória por 2×1, restariam apenas cinco jogos para definir o futuro da equipe – que poderia se classificar para o Mundial pela primeira vez na história. Se você não acompanha futebol e não sabe o desfecho dessa história, não procure saber! Deixe que Despelote conte esse capítulo de forma única, e aproveite cada minuto.

Sai dessa TV, menino! / Reprodução: Autor

A partir desse início, fica claro o objetivo do jogo: documentar o amor de uma nação pelo futebol, mesmo em tempos difíceis. Os pais de Julián sequer sabem o que é uma linha de impedimento, mas vibram com o gol da seleção. O país, mergulhado em uma crise sem precedentes – marcada por hiperinflação e pela troca do Sucre pelo dólar americano –, encontra no futebol uma razão para sorrir.

É nesses momentos que o amor ultrapassa todas as fronteiras. Sim, alguns engravatados podem destruir o seu país, mas, no fim das contas, você ainda o ama, pertence a ele, e suas raízes estão ali. A felicidade está nas pequenas coisas a que podemos nos apegar – como foi o caso do povo equatoriano com o futebol. Aqui no Brasil, muitos insistem em usar a expressão “futebol, pão e circo”. Bem, espero que essas pessoas joguem Despelote um dia, para entender o quanto o esporte pode ser essencial para uma nação – nos bons e maus momentos.

Crise assola o Equador / Reprodução: Autor

Juliaaaaan

Do ponto de vista da gameplay, Despelote é um jogo simplório. A cada dia de eliminatória, estamos livres para explorar a cidade e fazer coisas de criança. Podemos interagir – e atrapalhar – os moradores, além de brincar com a “pelota” por aí, seja sozinho ou com os amigos. O comando é simples: segure o analógico direito para trás e, em seguida, direcione-o para frente, realizando um chute.

Durante esses momentos livres, geralmente estamos sob uma limitação de horário, imposta por nossa mãe ou outro adulto. O clássico “Pode ir brincar, mas volta antes das 18:30, tá?”. Muitas vezes, a maior diversão não está em chutar a bola ou conversar com as pessoas, mas em assistir a um jogo de futebol. As TVs do bairro exibem trechos dos jogos das Eliminatórias do Equador. Você quer ser uma criança com os amigos ou um torcedor apaixonado ao lado de dois desconhecidos assistindo ao jogo em frente a uma TV de um estabelecimento? A escolha é sua. Como amante do futebol, confesso que me vi mais interessado em acompanhar esses momentos históricos da seleção equatoriana.

Chutando la pelota / Reprodução: Divulgação

Infelizmente, o jogo perde um pouco do ritmo em alguns trechos. Em certos momentos, acompanhamos Julián em sua adolescência e início da vida adulta. O desenvolvedor revela que tentou a carreira de jogador, passando pelas categorias de base do Deportivo Quito aos 13 anos, mas não seguiu adiante. Embora essa curiosidade seja interessante, essa fase de Julián é pouco explorada e parece desconectada da proposta central do jogo – quase como um sonho febril.

Também me decepcionei com a pouca presença de Tino Tini’s Soccer 99. Como assim só posso jogá-lo por um breve momento em outubro? Por que não disponibilizá-lo no menu inicial como um minigame à parte? Mesmo sendo simples, seria um ótimo passatempo – além de facilitar a conquista de alguns troféus, sem a necessidade de rejogar tudo.

No geral, a gameplay de Despelote não é o foco. Sendo praticamente uma autobiografia interativa, o principal está na vivência de Julián. Ouvir diálogos, interagir com moradores, atrapalhar casais em piqueniques, aguentar um professor chato… Tudo isso contribui para que Despelote seja uma experiência nostálgica e vívida, nos fazendo sentir crianças novamente, mesmo sem termos ligação direta com o Equador. Não espere um jogo de futebol – espere uma ótima narrativa.

FIFA 99, digo, Tino Tini’s Soccer 99 / Reprodução: Autor

Absolute arte

Artisticamente, Despelote é incrível. O jogo utiliza a técnica de dithering – um tipo de ruído proposital aplicado à imagem. Comparando com outras obras, lembra Return of the Obra Dinn, embora aqui haja cores. A estética é única e, apesar de ter sido comum no passado, hoje é rara. Ver Despelote apostar nesse estilo lhe confere uma identidade marcante: basta uma screenshot para saber de qual jogo se trata.

Na parte sonora, mais elogios. Os desenvolvedores, com ajuda de colaboradores, captaram sons reais da região, tornando a experiência incrivelmente imersiva: conversas de rua, cachorros latindo, TVs ao fundo… tudo se mistura e constrói um Equador palpável na tela. Ao fim do jogo, Julián – agora como desenvolvedor – conta que gravou sons em um parque com a ajuda de um segurança, por conta de possíveis riscos envolvendo o equipamento caríssimo usado por seu assistente. São detalhes como esse que tornam Despelote único.

Despelote possui um estilo artístico único / Reprodução: Autor

Gracias a dios nací en Latinoamerica

Despelote é, acima de tudo, a luta de um povo. De pessoas que, mesmo diante das adversidades, seguem em frente com orgulho de seu país. Que encontraram no futebol um abrigo, e que ao longo dos anos abraçaram não só o esporte bretão, mas diversas outras paixões. Mesmo se passando no Equador, o jogo me trouxe nostalgia. As experiências latino-americanas são compartilhadas – afinal, quem nunca ouviu um velho reclamar que você está jogando bola na rua? Embora não seja uma experiência perfeita, Despelote certamente foi uma das mais marcantes que tive nos últimos tempos, me deixando até levemente emotivo ao final. Viva o futebol!

Despelote
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